Letras et cetera - Revista Digital

O homem temporário

Como considerar o homem que dilapida a sua própria razão.
Se ele se abaixa para adorar outro homem.
Se ele se pasma diante do pó que lhe entra nos olhos.
Se ele emite sons que não lhe pertencem.
Diz com a língua de outrossim.

Onde está o ouvido ingénuo da criança.
O olhar navegador e o enigma singelo da palavra.
Onde está o beneplácito da sua condição.
Se os estatutos que vai receber não tiveram a sua aceitação.
Só letreiros recebeu.
Letreiros que o inundaram desde os cueiros até ao ultraje da última consideração.

A morte cura todos os antedatos e a saudade também morre no letargo do calendário.
Menino de plástico.
De bronze.
De água sem percentagens de razão.

Menino adquirido no amor.
Ou na razão.
Menino que vai fazer o que lhe for ditado.
Menino estendido na terra antes de morrer.
Com algumas marcas nos dentes.
Algumas virgulas de saber.
A razão morta antes de crescer.
Amarelo e plural como o mais simples e fóssil animal.
Mas com um nome na lápide.
Um caderno que já não fala.
Mas ainda o vento com desprezo lê.

É esse homem que virá depois de mim.
Que de mim só dirá o que disserem de mim.
E talvez mais uma virgula rebelde.

Menino com raiz que não lhe pertence.
Que nasceu num livro aberto onde já tudo está escrito.
Homem dominó abraçado nos seus pares.
Sofisticado e crente da hipótese dum outro jogo.
Aquele que lhe permita jogar com pedras que ele próprio pariu.
Ou então fazer um serão com os juízes da sua abnegação.

Nada é necessário!... poderia ter dito Gandhi. Mas ele proferiu o dogma da afirmação engaiolando o indivíduo num enredo já escrito.

Theófilo de Amarante ( Fernando Oliveira )